A separação necessária entre mãe e filha e um encantador reencontro.
O
mito de Deméter-Core:
“No Olimpo, Deméter se casa com Zeus e geram Core. Um dia Core estava brincando
em Elêusis e vê uma flor de narciso no qual ela fica encantada e acaba
cheirando esta flor. Ao cheirar esta flor, Core fica tonta. Então a terra se
abre e Hades vem numa carruagem para raptar Core e levá-la para o Hades, pois Hades
apaixonou-se por Core.
Deméter sente a falta de sua filha e fica louca a sua procura, sai do Olimpo e
vai em busca de sua filha pelo o mundo inteiro. Durante nove dias e nove
noites a deusa procura sua filha sem nenhuma pista. Enquanto Deméter está à
procura de sua filha, a terra fica sem vegetação e sem fertilidade.
No décimo dia, Hélio diz a Deméter que viu Core ser sequestrada por Hades.
Deméter, então, se transforma em uma ama e vai conhecer Céleo e Metanira, que
são reis de Elêusis, e cuida do filho do casal, Demofonte. Deméter decide
transformá-lo em deus, para adotá-lo, levando ele ao fogo para sua purificação,
mas sua mãe descobre e a impede com um grito.
Deméter diz que só volta ao Olimpo quando encontrar sua filha. Então Zeus manda
Hermes ir para Hades convencer Hades de devolver a filha de Deméter. Hermes
convence o irmão de Zeus à devolver Perséfone, mas este dá uma romã para ela
comer.
Deméter vai ao encontro de Core e ao abraçá-la, sente sua filha diferente e
pergunta se ela comeu algo em Hades. Core diz que comeu uma romã e, por causa
disso, ela terá que passar um terço do ano em Hades . Core se transforma
em Perséfone, que é esposa de Hades.
Antes de voltar ao Olimpo, Deméter ensina os seus rituais para Célio e seu
filho Triptólemo, e, ao voltar ao Olimpo, a terra volta a ter vegetação e a ser
fértil.
Interpretação do Mito:
Deméter significa Mãe-Terra que simboliza excesso de proteção, trazendo o dom
da empatia, compreensão emocional e física das necessidades da pessoa.
Tendência a tratar os outros como se fossem seus filhos e sua preocupação
principal está centrada na família. Deméter é regida pelo Eros (amor), o
não-verbal, saciando as necessidades de seus filhos, tendo como princípio o
corpo e o material. Em síntese Deméter representa o arquétipo da mãe.
Perséfone é a rainha do mundo dos espíritos onde existe o que há de mais
profundo no psiquismo humano. Ela vive no Hades e entra em contato com os
conteúdos reprimidos, estando numa fase profunda do inconsciente.
Hades é o rei do Hades. Ele rege o mundo inconsciente e as riquezas interiores.
Sua missão é conduzir pessoas no caminho do autoconhecimento e a integração,
levando-as ao seu processo de individuação. Regido pelo logos (leis e limites),
ética, principio espiritual.
Hades representa o arquétipo do pai.
Pode-se amplificar este mito com a fase inicial do desenvolvimento do homem; no
início quando Core ainda era um feto havia uma simbiose entre a Deméter e
Core.
Nesta fase Jung se refere ao termo uróboros que representa o símbolo a serpente
que morde a própria cauda e o início da vida. No uróboros o feto vive em
equilíbrio e totalidade. O corpo da mãe e da criança se mistura, onde não se
pode definir uma e outra. Quando a criança nasce, não se conhece todas as
forças que entrelaçam, cercam e enredam os relacionamentos entre mãe e o bebê
pequeno. Só a mulher tem o dom da fertilidade, dando a luz e a vida a um novo
ser. O mesmo acontece entre Deméter e Core; a menina tinha o amor, a proteção e
a satisfação das suas necessidades que só a Grande Mãe podia proporcionar à
filha. Não só Core, mas todos as crianças pequenas que vivem no Olimpo, ou seja
"O paraíso da infância”, passam a simbolizar a consciência. Nesta fase o
bebê assume uma posição horizontal vivenciando o arquétipo da mãe que foi
representado no mito pela Deméter, a Mãe-Terra. Quando Core cheira a flor de
narciso, ela fica tonta, e desta forma é sequestrada por Hades. A flor de
narciso simboliza uma armadilha para que Core seja raptada.
Este rapto está relacionado a primeira experiência sexual onde Core sai
do" paraíso da infância " para entrar em contato com o mundo dos
mortos ou o seu inconsciente. Com este rapto Core se transforma em Perséfone
que é a esposa de Hades e rainha do inferno. Por ser rainha do inconsciente,
ela lida com o que todos temem e reprimem. (Se ela estiver muito aflorada pode
levar a uma psicose). Com isto Perséfone entra em contato com o arquétipo do
pai.
Deméter sente falta de sua filha e Zeus manda que busque Perséfone. Hades
permite que volte a se encontrar com a mãe, mas dá uma semente de romã para ela
comer. Esta semente representa, simbolicamente, a sexualidade e a repressão de Hades
sobre Perséfone. Por causa desta semente, Perséfone permanece entre a
consciência e o inconsciente.
Este mito é constelado em pessoas com traços infantis sempre precisando de
outras pessoas para tomar as decisões por ela. No caso de Perséfone ela depende
da mãe ou do marido. Desta forma ela não tem maturidade, tendo a recusa a
crescer, por isso ela tem medo de assumir a própria individualidade.
...
O arquétipo Deméter-Core representa a esfera vivencial
de mãe-filha, estranha ao homem e que também o exclui. O culto a Deméter traz
todos os passos de uma ordem social de cunho matriarcal, no qual o homem é um
fator realmente imprescindível, mas perturbador.
Deméter, a deusa da terra cultivada, passeia com sua filha.
(A Primavera. Sandro Botticelli. 1445-1510)
Hades, o Deus do Mundo Subterrâneo, rapta "a menina".
Hermes, o mensageiro dos Deuses, promove o reencontro.
Foi feito uma acordo: Perséfone, a filha raptada, passa três quartos do tempo com o marido, Hades. E uma vez por ano vai ver a mãe, que enfeita a terra de flores.
Nasce, então, a primavera.
Segundo o Mestre Junito de Souza Brandão:
“O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico; ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. "Decifrar o mito é, pois, decifrar-se".
A menopausa representada no mito de Deméter - Uma visão junguiana
São muitas as passagens por que a mulher passa em sua vida. Podemos
considerar as principais as seguintes: nascimento, menstruação, casamento,
gravidez, parto, menopausa e morte. Se fizermos uma retrospectiva aos assuntos
mais estudados será fácil constatar que dentre eles a menopausa é o menos
estudado, o que não significa que seja o menos importante.
O termo menopausa deriva do grego (mens = mês e pausis = parada); significa o fim dos fluxos menstruais ou a última menstruação, devido à perda da atividade folicular ovariana. A menopausa costuma ocorrer entre 35 e 59 anos, dizendo-se prematura quando se instala antes dos 40 anos, e tardia após os 52 anos. No discurso das mulheres percebemos que a maioria delas considera a menopausa como a parada da menstruação ou fim da fertilidade, o que chama atenção uma vez que se costuma considerar que a própria feminilidade da mulher é significada pela via da maternidade.
O material referente à menopausa, além de escasso, refere-se a ela como uma doença de carência, uma neurose ou um sintoma de envelhecimento. É verdade que, na literatura junguiana, muito já foi explorado no que se refere ao processo de individuação e a segunda metade da vida. Além disso, é impressionante como há, na mitologia, contos, entre outros, referências a situações de passagem que o ser humano atravessa, tais como os citados anteriormente.
Entretanto, é mais impressionante percebermos que são mínimas as referências a uma situação que toda mulher que vive até cerca dos 50 anos precisa enfrentar: a menopausa. Dentre os mitos e contos, procuramos aqui imaginar como o mito de Deméter e Perséfone, deusas gregas, pode ser utilizado para ilustrar o ritual de passagem ao qual é submetida a mulher quando sua menstruação começa a faltar e como ela se relaciona com a psique e o corpo nesta fase.
Recorro à versão resumida de Junito Brandão que Iraci Galias apresenta em seu artigo "A Mãe-Coruja e a Menopausa":
"Coré (depois Perséfone, filha de Deméter) crescia tranqüila e feliz entre as ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o auxílio de Zeus (seu pai). Coré colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a terra se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo ctônico (reino de Hades, ou Inferno).
Desde então começou para a deusa (Deméter) a dolorosa tarefa de procurar a filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, com um archote aceso em cada uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada para o abismo,
Coré dera um grito agudo e Deméter acorreu, mas não conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido. Simplesmente a filha desapareceu. Durante nove dias e nove noites, sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a jovem estava sendo arrastada para algum lugar. Mas não lhe foi possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as sombras da noite. Somente Hélio, que tudo vê, cientificou-a da verdade. Irritada (furiosa!) com Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na Terra, abdicando de suas funções divinas, até que lhe devolvessem a filha.
Sob o aspecto de uma velha, dirigiu-se a Elêusis e primeiro sentou-se sobre uma pedra, que passou, desde então, a chamar-se "Pedra sem Alegria". Interrogada pelas filhas do rei local, Céleo, declarou chamar-se Doso e que escapara, há pouco, da mão de piratas que a levaram, à força, da ilha de Creta.
Convidada para cuidar de Demofonte, filho recém-nascido da rainha Metanira, a deusa aceitou a incumbência. Ao penetrar no palácio, todavia, sentou-se num tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, com o rosto coberto por um véu, até que uma criada, Iambe, fê-la rir, com seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Deméter não aceitou o vinho que lhe ofereceu Metanira, mas pediu que lhe preparassem cíceon, que significa "mistura, perturbação, agitação". Trata-se, ao que parece, de uma bebida mágica, cujos efeitos não se conhece bem.
Encarregada de cuidar do caçula Demofonte, "o que brilha entre o povo", a deusa não lhe dava leite, mas, após esfregá-lo com ambrosia, o escondia, durante a noite no fogo, "como se fora um tição".
A cada dia o menino se tornava mais belo e parecido com um deus. Deméter realmente desejava torná-lo imortal e eternamente jovem. Uma noite, porém, Metanira descobriu o filho entre as chamas e começou a gritar desesperada. A deusa interrompeu o grande rito iniciático e exclamou pesarosa (e muito raivosa!): "Homens ignorantes, insensatos, que não sabeis discernir o que há de bom ou de mau em vosso destino. Eis que tua loucura te levou à mais grave das faltas! Juro pela água implacável do Estige, pela qual juram também os deuses: eu teria feito de teu filho um ser eternamente jovem e isento da morte, outorgando-lhe um privilégio imorredouro. A partir de agora, no entanto, ele não poderá escapar do destino da morte". Surgindo em todo seu esplendor com uma luz ofuscante a emanar-lhe do corpo, solicitou, antes de deixar o palácio, que se lhe erguesse um grande templo, e um altar onde ela, pessoalmente, ensinaria seus ritos aos seres humanos. Encarregou, em seguida. Triptóleno, irmão mais velho de Demofonte, de difundir pelo mundo inteiro a cultura do trigo.
Construído o santuário, Deméter recolheu-se ao seu interior, consumida pela saudade de Perséfone. Provocada por ela (Deméter), uma seca terrível se abateu sobre a Terra. Em vão Zeus lhe mandou mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e nem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone.
O rei dos infernos curvou-se à vontade soberana do irmão, mas, habilmente, fez com que a esposa colocasse na boca uma semente de romã. Obrigou-a a engolir, e assim a impedia de deixar a "outra vida". Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe.
Reencontrada a filha, Deméter (refeita e vibrante) retornou ao Olimpo e a Terra cobriu-se, instantaneamente, de verde. Antes de seu regresso, porém, a grande deusa ensinou todos os seus mistérios ao rei Céleo, a seu filho Triptóleno, a Déocles e a Eumolpo ensinou "os mais belos ritos, os ritos augustos que é impossível transgredir, penetrar ou divulgar: o respeito pela deusas é tão forte, que embarga a voz".
Bolen, em "As Deusas e a Mulher" e Galias, em seu artigo "A Mãe-Coruja e a Menopausa", analisam muito bem o mito de Deméter e Perséfone. Apresento aqui algumas de suas observações, acrescentando reflexões pessoais.
No mito, é nítida a referência feita às fases da vida (menina-moça-velha) de seus personagens. Pensando em Deméter e Perséfone como componentes simbólicos da mesma personalidade, e na simbologia da menopausa como aquela que leva a mulher jovem e deixa a velha, podemos imaginar o rapto de Hades como a menopausa, ou seja, aquele que leva a jovem da vida da mulher adulta e deixa a velha (muitas mulheres afirmam que com a menopausa passaram a se sentir velhas). Como afirma Galias, "quando da mulher se vai a menstruação e leva com ela a jovem, fica a velha". Essa separação, demonstrada de forma dramática no mito, parece ser de grande importância para mostrar os conflitos que a mulher que fica para viver uma nova fase passa a enfrentar.
Se olharmos com atenção para os conflitos enfrentados pela deusa, como as mudanças corporais, vivências estranhas, tristeza, solidão, labilidade de humor, podemos perceber que eles podem ser associados com facilidade às vivências por que passa uma mulher na menopausa. Como resultado de tantas mudanças e limitações está a ira, já que a "jovem" dela foi levada. A mulher passa por um momento de solidão, recolhimento e isolamento, já que não tem como expressar aos outros o que se passa com ela. A vivência de morte e esterilidade se relacionam com o fim da fertilidade que assola a terra. Como Deméter, é como se a mulher que entra na menopausa se sentasse na "Pedra sem Alegria".
No mito, a deusa não desiste de sua busca, a "velha" acredita que conseguirá resgatar a "jovem" do Inferno. O mesmo me parece que acontece com a mulher depois que entra na menopausa. É impressionante hoje percebermos como as mulheres estão cada vez mais jovens esteticamente, além do fato comprovado de que elas tem vivido muito mais. O cuidado de Demofonte e tentativa de torná-lo imortal pode ser associado ao desejo da mulher menopausada de ser eternamente jovem. Mas será que, pensando no que vinha sendo discutido anteriormente, Demofonte não poderia ser associado ao animus dessa mulher, antes primitivo e infantil, e que agora, com a ida da jovem para o Inferno, é cuidado, tratado e cresce forte e robusto?
O retorno de Perséfone, comprometida a passar 1/3 do ano nas profundezas pode ser facilmente relacionado ao fato de que é através de sua juventude que, diferente do que a mulher pensa não se perdeu para sempre com a menopausa, é que ela estará comprometida com o profundo, mostrando a necessidade e possibilidade do reencontro e da união da jovem e da velha.
Analisado como o mito em si pode se relacionar à menopausa, podemos considerar qual a importância do arquétipo de Deméter para a mulher, e como o mesmo influencia a mulher que chegou ao fim de sua vida fértil.
Deméter é conhecida como a deusa mãe, da fertilidade e provedora de alimento espiritual, sendo considerada a mais nutridora de todas as deusas. Mesmo que não possamos afirmar que este é o arquétipo dominante em todas as mulheres, Bolen acredita que no momento em que uma mulher considera sobre ter um filho, ela está cultivando e convidando o arquétipo materno, de Deméter, a se tornar mais ativo. Acredito que possamos afirmar sim, que a grande maioria das mulheres (senão todas), em algum momento de sua vida considera ou ao menos pensa sobre ter um filho. Se neste momento, o arquétipo materno está se tornando um pouco mais ativo, poderíamos então afirmar que, pelos menos em alguns momentos durante sua existência, toda mulher tem o arquétipo de Deméter dominante?
A partir do mito, podemos perceber que quando o arquétipo não pode ser realizado, a mulher tipo Deméter pode mergulhar em uma depressão, uma vez que sua vida passa a ser afetada por falta de significado e vazio. Se pensarmos na menopausa como uma impossibilidade, agora definitiva, de realizar novamente o arquétipo, principalmente se pensarmos que ela costuma vir com a saída dos filhos de casa, poderíamos pensar também na mesma como uma ativação, em diferentes graus, desse arquétipo? Se considerarmos, além disso, que de acordo com as pesquisas, depressão, tristeza e angústia são sintomas comum da menopausa, não poderíamos associar esses sentimentos àqueles sofridos por Deméter quando sua filha cresce e deixa sua casa? Pensando no conto discutido anteriormente sobre a natureza da vida-morte-vida, não seriam esses sintomas características do enfrentamento de uma morte, no caso da morte de um período, que inclui a possibilidade de ser mãe novamente (ou pela primeira vez)?
Esses questionamentos são feitos baseados na importância da maternidade para a mulher, além de ser ela a característica mais marcante de Deméter. Entretanto, é necessário ressaltar que este arquétipo não se relaciona apenas ao ser mãe, mas ele representa o instinto maternal desempenhado também na nutrição física, psicológica ou espiritual de qualquer outra pessoal, mesmo que não seja um filho biológico. Assim, podemos imaginar que a impossibilidade de nutrir um filho biológico poderia possibilitar que a mulher passasse a nutrir outras pessoas e, mais importante, a si mesma. Seria essa a razão pela qual grande parte das mulheres que entram na menopausa começam a buscar seu próprio desenvolvimento psicológico através de reflexões e questionamentos?
BOLEN, J. S. (1990) As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres. Trad. Maria Lydia Remédio. Col. Amor e Psique. São Paulo: Paulus, pp. 237-274.
GALIAS, I. (1992) A Mãe-Coruja e a Menopausa. In: Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Humor (10), pp. 20-37.
O termo menopausa deriva do grego (mens = mês e pausis = parada); significa o fim dos fluxos menstruais ou a última menstruação, devido à perda da atividade folicular ovariana. A menopausa costuma ocorrer entre 35 e 59 anos, dizendo-se prematura quando se instala antes dos 40 anos, e tardia após os 52 anos. No discurso das mulheres percebemos que a maioria delas considera a menopausa como a parada da menstruação ou fim da fertilidade, o que chama atenção uma vez que se costuma considerar que a própria feminilidade da mulher é significada pela via da maternidade.
O material referente à menopausa, além de escasso, refere-se a ela como uma doença de carência, uma neurose ou um sintoma de envelhecimento. É verdade que, na literatura junguiana, muito já foi explorado no que se refere ao processo de individuação e a segunda metade da vida. Além disso, é impressionante como há, na mitologia, contos, entre outros, referências a situações de passagem que o ser humano atravessa, tais como os citados anteriormente.
Entretanto, é mais impressionante percebermos que são mínimas as referências a uma situação que toda mulher que vive até cerca dos 50 anos precisa enfrentar: a menopausa. Dentre os mitos e contos, procuramos aqui imaginar como o mito de Deméter e Perséfone, deusas gregas, pode ser utilizado para ilustrar o ritual de passagem ao qual é submetida a mulher quando sua menstruação começa a faltar e como ela se relaciona com a psique e o corpo nesta fase.
Recorro à versão resumida de Junito Brandão que Iraci Galias apresenta em seu artigo "A Mãe-Coruja e a Menopausa":
"Coré (depois Perséfone, filha de Deméter) crescia tranqüila e feliz entre as ninfas e em companhia de Ártemis e Atená, quando um dia seu tio Hades, que a desejava, a raptou com o auxílio de Zeus (seu pai). Coré colhia flores e Zeus, para atraí-la, colocou um narciso ou um lírio às bordas de um abismo. Ao aproximar-se da flor, a terra se abriu, Hades ou Plutão apareceu e a conduziu para o mundo ctônico (reino de Hades, ou Inferno).
Desde então começou para a deusa (Deméter) a dolorosa tarefa de procurar a filha, levando-a a percorrer o mundo inteiro, com um archote aceso em cada uma das mãos. No momento em que estava sendo arrastada para o abismo,
Coré dera um grito agudo e Deméter acorreu, mas não conseguiu vê-la, e nem tampouco perceber o que havia acontecido. Simplesmente a filha desapareceu. Durante nove dias e nove noites, sem comer, sem beber, sem se banhar, a deusa errou pelo mundo. No décimo dia encontrou Hécate, que também ouvira o grito e viu que a jovem estava sendo arrastada para algum lugar. Mas não lhe foi possível reconhecer o raptor, cuja cabeça estava cingida com as sombras da noite. Somente Hélio, que tudo vê, cientificou-a da verdade. Irritada (furiosa!) com Hades e Zeus, decidiu não mais retornar ao Olimpo, mas permanecer na Terra, abdicando de suas funções divinas, até que lhe devolvessem a filha.
Sob o aspecto de uma velha, dirigiu-se a Elêusis e primeiro sentou-se sobre uma pedra, que passou, desde então, a chamar-se "Pedra sem Alegria". Interrogada pelas filhas do rei local, Céleo, declarou chamar-se Doso e que escapara, há pouco, da mão de piratas que a levaram, à força, da ilha de Creta.
Convidada para cuidar de Demofonte, filho recém-nascido da rainha Metanira, a deusa aceitou a incumbência. Ao penetrar no palácio, todavia, sentou-se num tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, com o rosto coberto por um véu, até que uma criada, Iambe, fê-la rir, com seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Deméter não aceitou o vinho que lhe ofereceu Metanira, mas pediu que lhe preparassem cíceon, que significa "mistura, perturbação, agitação". Trata-se, ao que parece, de uma bebida mágica, cujos efeitos não se conhece bem.
Encarregada de cuidar do caçula Demofonte, "o que brilha entre o povo", a deusa não lhe dava leite, mas, após esfregá-lo com ambrosia, o escondia, durante a noite no fogo, "como se fora um tição".
A cada dia o menino se tornava mais belo e parecido com um deus. Deméter realmente desejava torná-lo imortal e eternamente jovem. Uma noite, porém, Metanira descobriu o filho entre as chamas e começou a gritar desesperada. A deusa interrompeu o grande rito iniciático e exclamou pesarosa (e muito raivosa!): "Homens ignorantes, insensatos, que não sabeis discernir o que há de bom ou de mau em vosso destino. Eis que tua loucura te levou à mais grave das faltas! Juro pela água implacável do Estige, pela qual juram também os deuses: eu teria feito de teu filho um ser eternamente jovem e isento da morte, outorgando-lhe um privilégio imorredouro. A partir de agora, no entanto, ele não poderá escapar do destino da morte". Surgindo em todo seu esplendor com uma luz ofuscante a emanar-lhe do corpo, solicitou, antes de deixar o palácio, que se lhe erguesse um grande templo, e um altar onde ela, pessoalmente, ensinaria seus ritos aos seres humanos. Encarregou, em seguida. Triptóleno, irmão mais velho de Demofonte, de difundir pelo mundo inteiro a cultura do trigo.
Construído o santuário, Deméter recolheu-se ao seu interior, consumida pela saudade de Perséfone. Provocada por ela (Deméter), uma seca terrível se abateu sobre a Terra. Em vão Zeus lhe mandou mensageiros, pedindo que regressasse ao Olimpo. A deusa respondeu com firmeza que não voltaria ao convívio dos Imortais e nem tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe entregassem a filha. Como a ordem do mundo estivesse em perigo, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Perséfone.
O rei dos infernos curvou-se à vontade soberana do irmão, mas, habilmente, fez com que a esposa colocasse na boca uma semente de romã. Obrigou-a a engolir, e assim a impedia de deixar a "outra vida". Finalmente, chegou-se a um consenso: Perséfone passaria quatro meses com o esposo e oito com a mãe.
Reencontrada a filha, Deméter (refeita e vibrante) retornou ao Olimpo e a Terra cobriu-se, instantaneamente, de verde. Antes de seu regresso, porém, a grande deusa ensinou todos os seus mistérios ao rei Céleo, a seu filho Triptóleno, a Déocles e a Eumolpo ensinou "os mais belos ritos, os ritos augustos que é impossível transgredir, penetrar ou divulgar: o respeito pela deusas é tão forte, que embarga a voz".
Bolen, em "As Deusas e a Mulher" e Galias, em seu artigo "A Mãe-Coruja e a Menopausa", analisam muito bem o mito de Deméter e Perséfone. Apresento aqui algumas de suas observações, acrescentando reflexões pessoais.
No mito, é nítida a referência feita às fases da vida (menina-moça-velha) de seus personagens. Pensando em Deméter e Perséfone como componentes simbólicos da mesma personalidade, e na simbologia da menopausa como aquela que leva a mulher jovem e deixa a velha, podemos imaginar o rapto de Hades como a menopausa, ou seja, aquele que leva a jovem da vida da mulher adulta e deixa a velha (muitas mulheres afirmam que com a menopausa passaram a se sentir velhas). Como afirma Galias, "quando da mulher se vai a menstruação e leva com ela a jovem, fica a velha". Essa separação, demonstrada de forma dramática no mito, parece ser de grande importância para mostrar os conflitos que a mulher que fica para viver uma nova fase passa a enfrentar.
Se olharmos com atenção para os conflitos enfrentados pela deusa, como as mudanças corporais, vivências estranhas, tristeza, solidão, labilidade de humor, podemos perceber que eles podem ser associados com facilidade às vivências por que passa uma mulher na menopausa. Como resultado de tantas mudanças e limitações está a ira, já que a "jovem" dela foi levada. A mulher passa por um momento de solidão, recolhimento e isolamento, já que não tem como expressar aos outros o que se passa com ela. A vivência de morte e esterilidade se relacionam com o fim da fertilidade que assola a terra. Como Deméter, é como se a mulher que entra na menopausa se sentasse na "Pedra sem Alegria".
No mito, a deusa não desiste de sua busca, a "velha" acredita que conseguirá resgatar a "jovem" do Inferno. O mesmo me parece que acontece com a mulher depois que entra na menopausa. É impressionante hoje percebermos como as mulheres estão cada vez mais jovens esteticamente, além do fato comprovado de que elas tem vivido muito mais. O cuidado de Demofonte e tentativa de torná-lo imortal pode ser associado ao desejo da mulher menopausada de ser eternamente jovem. Mas será que, pensando no que vinha sendo discutido anteriormente, Demofonte não poderia ser associado ao animus dessa mulher, antes primitivo e infantil, e que agora, com a ida da jovem para o Inferno, é cuidado, tratado e cresce forte e robusto?
O retorno de Perséfone, comprometida a passar 1/3 do ano nas profundezas pode ser facilmente relacionado ao fato de que é através de sua juventude que, diferente do que a mulher pensa não se perdeu para sempre com a menopausa, é que ela estará comprometida com o profundo, mostrando a necessidade e possibilidade do reencontro e da união da jovem e da velha.
Analisado como o mito em si pode se relacionar à menopausa, podemos considerar qual a importância do arquétipo de Deméter para a mulher, e como o mesmo influencia a mulher que chegou ao fim de sua vida fértil.
Deméter é conhecida como a deusa mãe, da fertilidade e provedora de alimento espiritual, sendo considerada a mais nutridora de todas as deusas. Mesmo que não possamos afirmar que este é o arquétipo dominante em todas as mulheres, Bolen acredita que no momento em que uma mulher considera sobre ter um filho, ela está cultivando e convidando o arquétipo materno, de Deméter, a se tornar mais ativo. Acredito que possamos afirmar sim, que a grande maioria das mulheres (senão todas), em algum momento de sua vida considera ou ao menos pensa sobre ter um filho. Se neste momento, o arquétipo materno está se tornando um pouco mais ativo, poderíamos então afirmar que, pelos menos em alguns momentos durante sua existência, toda mulher tem o arquétipo de Deméter dominante?
A partir do mito, podemos perceber que quando o arquétipo não pode ser realizado, a mulher tipo Deméter pode mergulhar em uma depressão, uma vez que sua vida passa a ser afetada por falta de significado e vazio. Se pensarmos na menopausa como uma impossibilidade, agora definitiva, de realizar novamente o arquétipo, principalmente se pensarmos que ela costuma vir com a saída dos filhos de casa, poderíamos pensar também na mesma como uma ativação, em diferentes graus, desse arquétipo? Se considerarmos, além disso, que de acordo com as pesquisas, depressão, tristeza e angústia são sintomas comum da menopausa, não poderíamos associar esses sentimentos àqueles sofridos por Deméter quando sua filha cresce e deixa sua casa? Pensando no conto discutido anteriormente sobre a natureza da vida-morte-vida, não seriam esses sintomas características do enfrentamento de uma morte, no caso da morte de um período, que inclui a possibilidade de ser mãe novamente (ou pela primeira vez)?
Esses questionamentos são feitos baseados na importância da maternidade para a mulher, além de ser ela a característica mais marcante de Deméter. Entretanto, é necessário ressaltar que este arquétipo não se relaciona apenas ao ser mãe, mas ele representa o instinto maternal desempenhado também na nutrição física, psicológica ou espiritual de qualquer outra pessoal, mesmo que não seja um filho biológico. Assim, podemos imaginar que a impossibilidade de nutrir um filho biológico poderia possibilitar que a mulher passasse a nutrir outras pessoas e, mais importante, a si mesma. Seria essa a razão pela qual grande parte das mulheres que entram na menopausa começam a buscar seu próprio desenvolvimento psicológico através de reflexões e questionamentos?
BOLEN, J. S. (1990) As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres. Trad. Maria Lydia Remédio. Col. Amor e Psique. São Paulo: Paulus, pp. 237-274.
GALIAS, I. (1992) A Mãe-Coruja e a Menopausa. In: Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Humor (10), pp. 20-37.
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